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Moda em tempos de pandemia?

Lilyan Berlim*


O que está acontecendo com a moda neste momento? A moda mudou com a pandemia? Existe uma nova moda ou uma “moda nova”? Essas são perguntas aparentemente tolas, mas pertinentes para quem entende o contexto da indústria da moda na sociedade. Apesar de todos nos vestirmos e, de alguma forma, seguirmos tendências (se não estaríamos usando cartolas e vestidos com crinolinas) nem todos gostam de moda ou se interessam por ela, chegando a julgar como superficiais os questionamentos sobre moda. O fato é que, independente das opiniões, existe uma área industrial e mercadológica - literalmente imensa, que produz os bens que nos protegem e aquecem, nos moralizam e expressam nossa cultura do nascimento à morte – as roupas. Para os que se simpatizam com o campo são muitos questionamentos, mas existem alguns que não se calam. Um deles vem dos produtores, designers, empresários... O que fazer agora? O outro é um sussurro um tanto quanto assustador: Existirá moda após a pandemia do COVID-19? Como ficará o mercado e a indústria têxtil?


Chovem nas minhas redes sociais tais questionamentos. Eles vêm de empresas para as quais dei consultoria, alunos, ex-alunos, seguidores, jornalistas, etc. Nenhuma resposta formulada a partir do que já vivemos em termos de mercado é suficiente ou dá conta de aplacar as dúvidas – faltam dados porque estamos no olho do furacão e ainda não houve tempo e nem nada parecido com a atual pandemia para nos mostrar caminhos. A questão é bem complexa, mas é possível refletir. A indústria têxtil global está entre as três maiores do mundo e a moda é, em especial, sua força motriz. Em tempos de isolamento social global, de retração de mercados e de consumo de itens não essenciais, os caminhos que trilharão o mercado da moda e o desejo das aparências ainda são desconhecidos. Cabem apenas reflexões.


A partir dos primeiros sinais da pandemia já era visível algumas mudanças na moda. Nas semanas europeias de moda já eram visíveis alguns sinais como a diminuição da presença de compradores, jornalistas e designers asiáticos. Em março, houve o cancelamento da Semana de Moda Masculina de Paris e a Semana da Alta-Costura, que tinha data prevista para julho. Ainda em março o Conselho Administrativo da Federação de Alta Costura e Moda da França (FHCM) direcionou a primeira página de seu site oficial para uma nota sobre os cancelamentos, justificando-se e alegando estar em busca de alternativas que possam substituir o projeto de lançamentos presenciais convencionais. A Câmara Nacional da Moda Italiana também adiou as Semanas de Moda Italianas e aqui no Brasil tanto a São Paulo Fashion Week quanto o Vest Rio, os dois maiores eventos de moda brasileiros, foram cancelados. O site da semana de moda de Nova Iorque também cancelou eventos e, abatidos pela tragédia da cidade propôs lives com convidados para debater o sentido do que estava em curso. E assim por diante. Até aqui estamos apenas verificando que o exercício de branding dos grandes grupos de marcas de luxo ligadas a moda, as fashion weeks, ou o topo da pirâmide do sistema de moda. Resumindo, o topo do sistema começou a colapsar um pouco antes dos lockdowns globais[1].


No rastro destes fatos o necessário isolamento das pessoas e a consciência de suas vulnerabilidades começaram a gerar importantes impactos nas formas de consumo e no funcionamento geral do mercado. Atualizando os dados, pesquisas recentes mostram que as vendas de roupas e acessórios no varejo brasileiro caíram 84,8% nas duas primeiras semanas de abril, e que consumidores na Europa e nos EUA esperam diminuir seus gastos com vestuário em pelo menos 65% – tais dados mostram apenas o início de todo um processo que parece ainda estar começando[2].


Assim, assistimos ir por água abaixo uma cultura de consumo exacerbada que imperou da década de 90 até agora. Surge em seu lugar, por necessidade (e isso é bem importante frisar), a cultura do anticonsumismo, ou do consumo consciente. Desvinculada do ambientalmente e/ou eticamente produzido, conceitos que já vinham crescendo na esfera do consumo, surge uma nova cultura de consumo ligada as necessidades essenciais tais como alimentação, saúde (planos de saúde, medicamentos, etc.), educação, moradia e transporte (entre outros); uma cultura que se desprende da aparência, pois a aparência do sujeito em tempos de isolamento já não é tão mais importante quanto antes, e liga-se ao que se vem falando por ai há muito tempo: mais essência, menos tendência. Portanto, não é apenas a ausência das lojas físicas (que estão fechadas) e a não exposição social das pessoas presencialmente que estão alterando o consumo de moda. Aparecem como carros chefes na alteração de todo o consumo a severidade da pandemia da COVID-19, a eminência do desconhecido, a insegurança e o medo.


Neste ponto percebo que um questionamento frequente: A pandemia do coronavírus mudará a cultura de consumo de moda para sempre ou haverá no final deste período um boom de consumo? Ninguém tem essa resposta. O consumo de moda é misterioso porque envolve um desejo vital de expressão e de adequação social, logo, um desejo que também sofre constrangimentos morais e culturais que estão sujeitos à ação do tempo presente e dos fatos cotidianos. Por exemplo - Talvez, no momento (ou depois) de uma pandemia o sujeito não queira comprar e usar uma roupa nova porque ficará constrangido com a ideia de que ao usar tal roupa possa parecer estar ostentando “ter dinheiro” num momento de crise, onde as assimetrias sociais estão sendo, literalmente, esfregadas na cara de todos. O contrário dessa afirmação também pode ser verdadeiro – o sujeito pode se sentir estimulado a ostentar riqueza e exercer, através das roupas, uma distinção que lhe parece pertinente. Ou seja, por mais que nos valhamos das estatísticas e dados já analisados, ou em análise, não chegaremos a uma resposta única ou a uma previsão coerente. O consumo de moda não pode ser destrinchado apenas por ferramentas comuns as pesquisas de consumo – há de se ter bom senso e humildade para reconhecermos a importância do espirito do tempo e das subjetividades como vetores principais na criação e manutenção dos símbolos presentes nas aparências, que se fundem no consumo de moda.


Sabemos que a forma de comprar mudará, talvez para sempre. Presente neste ponto está a escalada dos e-commerces, que é irreversível, pois o distanciamento social destacou a importância dos canais digitais de venda e fez deles uma prioridade para as marcas. Assistimos as empresas que já surfavam esta onda resistirem com alguma robustez a queda das vendas; contudo, não temos conhecimento de como elas reagirão à letal recessão do mercado a médio e longo prazo. As formas de comercio podem se ajustar, mas como se ajustarão os desejos? As identidades? Na verdade, tudo que sabemos com certeza é que os impactos causados pela pandemia no comportamento de consumo são e serão imensos. O aspecto mercadológico não é o único, mas a ponta de uma corrente formada por uma série de elos que estão se rompendo. Neste cenário, a área industrial e suas cadeias produtivas aparecem com força.


Responsável por boa parte da mão de obra no mundo, a indústria têxtil global e os negócios de moda, que são responsáveis por sua grandeza, vão sofrer não apenas financeiramente, mas estruturalmente. Isso vai exigir uma reestruturação profunda dos modelos de negócios, desde aqueles das fábricas que produzem as roupas dos grandes varejistas globais, como C&A, H&M e outros, até as grandes marcas de luxo. A gestão de empresas baseadas no just in time, e suas fábricas terceirizadas mundo a fora, terão que ser revistos, ou melhor, estão sendo. Entre esses pontos (o das roupas do fast fashion e do luxo, e entre os grandes conglomerados do varejo e aqueles do luxo e suas produções) estão inúmeras marcas de moda que também terão que se ressignificar enquanto negócio (abrindo parêntese para uma observação: Neste cenário uma salva de palmas para os modelos Slow Fashion – que vão balançar, mas não vão cair, pois precisamos reafirmar nossas relações – ponto central nos modelos fundamentados no slow)


O grande impacto no setor não é apenas a queda sem precedentes no consumo, mas o consequente desmantelamento das cadeias produtivas, que pararam por conta do isolamento e, também, pela falta de demanda. Todos sofrerão com este impacto, mas o choque será maior nos países que concentram alto nível de produção têxtil como Bangladesh, Índia, Camboja, Honduras, Etiópia e Brasil, locais onde os sistemas de saúde são frequentemente inadequados e a pobreza é abundantes. É nestes países que a maior parte de roupas vendidas nos varejistas globais é feita e, mesmo que em subcondições e dentro de uma profunda precarização, as pessoas que fazem as roupas (os trabalhadores têxteis) sempre contaram com a venda de sua mão de obra para sobreviver (nem arrisco dizer “viver”). Neste momento, esses trabalhadores estão tendo suas fontes de renda extintas porque, além de também estarem em isolamento (ou deveriam estar) as marcas de moda não estão mais vendendo – logo, não há mais o que produzir porque não há mais quem compre (estranho não é? Mas verdadeiro). Indiretamente, a brusca queda do consumo está ocasionando a demissões em massa, ou, no caso dos trabalhadores informais (que têm presença forte no segmento), a total ausência de trabalho, logo de renda. Para esses trabalhadores, a falta de renda significa, mais do que nunca, fome, doença e morte[3].


Os grandes empresários e executivos na área, bem como os pequenos e médios à frente de marcas nacionais, também eles estão passando por uma prova de fogo. Enfrentam a necessidade urgente de gerenciamento de uma crise em curso, ou seja, estão trocando o pneu com o carro andando. É compreensível o desespero e a angústia que acomete estes sujeitos uma vez que a cadeia produtiva da moda é longa e engloba de produtores desde rurais (no cultivo e extração de fibras têxteis) até produtores culturais (que englobam os desfiles e as semanas de moda), passando pelos setores de tecelagem e confecção têxtil. Considero-os com respeito. Duvido que muitos não estejam pensando apenas nos profits mas no caráter humano das longas cadeias que impulsionam, ou impulsionavam, com seus negócios; cadeias repletas de seres humanos, suas famílias e seus valores. Atrás das cadeias produtivas têxteis estão as pessoas que a constroem – são elas que estão atrás de qualquer roupa. Assim, como num efeito dominó, top models, fotógrafos, maquiadores, empresários e milhões de trabalhadores têxteis encontram-se unidos nesta cadeia de elos forte e frágeis que nos mostra o poder do sentido de “corrente” – onde o rompimento de um simples elo desconfigura o sentido do todo. Esse é um ponto bom para refletir. Pode começar por ai a noção de interdependência. Como podemos observar, mesmo com todo o montante financeiro movido pela moda, o potencial humano de desejar consumir e/ou de poder trabalhar, quando ‘desabilitado’ pelo medo põe um ponto final em todo o processo.


O consumo é essencial ao setor, mas o consumo de moda está atrelado ao desejo, em especial. Se há medo e morte, pode não haver desejo. Para que o consumo se concretize é preciso ter produção, mas se as pessoas adoecem, não há produção. E, também, se não há demanda, não há produção – simples assim. Consumo e produção se entrelaçam em torno de uma cultura de consumo de excessos que sempre se acreditou a mola da economia global, até que... o desejo é suplantado pelo medo do porvir.


As dramáticas mudanças no comportamento do consumidor e seus resultados na economia nos revelam, portanto, que o sistema capitalista neste momento não está mais funcionando tão bem. Nem tão pouco funciona o sistema de moda tal qual o conhecemos. A indústria da moda e suas intrínsecas teias dentro da indústria têxtil global encontram-se apenas no começo de uma grande e profunda transformação. Outros valores estão sendo colocados em jogo e nenhum setor sobreviverá sem uma revisão de propósitos (sei que a esta palavra está na moda demais, mas é ela mesmo que cabe aqui). Compartilhamento de valores, de informação, implementação de novas estratégias e, sobre tudo, um senso de respeito para com o semelhante e responsabilidade com o todo serão mais do que nunca necessários.


Se a situação é caótica por um lado, por outro ela presenta uma chance do setor se remodelar – o que já vinha sendo amplamente discutido pela área acadêmica global, pelos bons consultores da área e pelos agentes dos mercados alternativos. “Novos modelos de negócios para novos tempos” - um mote que demanda atenção vital. Não há plano B. Empresas de moda que não se alinharem minimamente com a agenda social ficarão pra trás, ou seja, fecharão suas portas.


Por que faço essa afirmação? Porque a área de moda é regida pelo moderno e não pelo convencional, logo, empresas que pararam na década de 90, com seus mecanismos de marketing exclusivos (aqui no sentido de excludentes mesmo, pois excluem de seus focos as pessoas que produzem seus bens e os consumidores que fogem aos padrões de beleza impostos), com suas economias flexibilizadas globalmente, seus focos em maximização de lucros, suas fábricas desterritorializada, trabalhadores submetidos à intensa precarização e condições análogas á escravidão estão longe de ser modernas. Muito longe. Apesar de toda a visibilidade brilhante de seus desfiles, vitrines e mídias sociais, seus punhados de celebridades sorridentes e suas bem remuneradas influenciadoras digitais, essas empresas afastaram-se do sentido expressivo e social da moda e, no fundo, produzem e comercializam apenas roupas – não moda, porque moda é a expressão humana do moderno. Digo humana, não econômica – entendem?


E cá entre nós, falando a real. Não é possível empoderar mulheres em um continente explorando outras em outro – isso é no mínimo enganoso. Que mulher continuará acreditando no poder de marcas que práticam com fervor a violação de direitos humanos e a exploração das mulheres? Quem pode continuar idolatrando e comprando de marcas que não empodera mulheres profissionalmente? Sabiam que nas 500 maiores empresas de moda do mundo as mulheres ocupam apenas 11% dos cargos de tomadas de decisão? No entanto, somos nós mulheres que costuramos, bordamos, passamos, lavamos, desfilamos, posamos para fotos de moda, estudamos e nos especializamos e, finalmente, somo as maiores consumidoras de moda. É injusto. Sim, independentemente da questão de gênero, atrocidades são frequentes na indústria da moda – mais do podemos imaginar. Muita visibilidade, produto do trabalho dos heads de marketing de grandes empresas, em contraste com muita invisibilidade (precarização do trabalho, violação de direitos, exploração do feminino, exclusão, impactos ambientais devastadores e outros, muitos outros)[4].


Vivemos por décadas sendo assolados por campanhas milionárias presentes em redes sociais, outdoors, páginas duplas em revistas, novelas, séries, reality shows, campanhas polemicas ou convencionais onde celebridades nos encantam ou nos chocam; assolados por publicidades que nos prometem sofisticação e glamour em calças jeans e roupichtas, por vitrines imensas, brilhos e espelhos e araras e uma noção de riqueza dourada que ilude especialmente os mais pobres. Tudo no campo do visível. Como diz a jornalista Naomi Klein, o marketing das marcas de moda tornou-se sua alma (uma alma materializada e visível) enquanto a manufatura – corpo real dos processos do fazer, tornou-se nebulosa, invisível, escondida. Assim assistimos o marketing de moda manipular o mais precioso em nós: nossa imaginação. Por essa razão os estudos nos mostram: o consumo de moda é imagético.


Pergunto-me se estamos parando para refletir sobre isso. Por isso esse texto - para clarear, Para que quem leia pense. É a partir destas reflexões que a crise balançará e acelerá o declínio as marcas fracas, que pararam no século XX, e dará força e corajem àquelas mais fortes e modernas. Quando digo marcas “fracas” refiro-me àquelas que falam ainda uma linguagem desenvolvida nas décadas de 80 e 90, do século passado, que visavam apenas maximização de lucros e a aceleração de um hiperconsumo sem entender que a moda é, sobre tudo, um fenomeno associado ao relacional. Tais marcas não entenderam ainda que os mercados decorrem do corpo social e suas relações. Falo aqui, sem me estender, da teoria da Nova Sociologoa Economica, uma revolução da compreensão do mercado que cabe como uma luva na área de moda, uma área tão proxima das relações sociais e da alma humana. Tais marcas, pobres em capitais simbólicos reais, afastaram-se das pessoas (também) reais, portanto, são fracas e tendem a desaparecer.


Sem romantizar, penso que a pandemia pode promover o fortalecimento de valores éticos com foco em responsabilidade e desenvolvimento sustentável; intensificar e centralizar discussões antes periféricas, como aquelas em torno da insensatez das práticas produtivas impactantes social e ambientalmente, assim como em torno das práticas comerciais irresponsáveis, do marketing enganoso, do consumismo, do materialismo e da insensata fobia por velocidade que nos acomete. A pandemia pode centralizar as ideias realmente importantes, especialmente a de sermos interdependentes.


Percebo que, de alguma forma, a consciência e as narrativas em torno da interdependência entre nós saem da periferia e ganham o centro neste momento. As práticas tendem a ser alteradas por essa dinâmica? Por quanto tempo? Ai estão duas boas questões. Para respondê-las, ou melhor, para “enfrentá-las” em tempos de pandemia, precisamos pensar na modernidade da moda não apenas na esfera do cultural, onde podemos entendê-la como uma ferramenta política importante que expressa o que pensamos sobre nós mesmos, mas, também, como um sistema sociotécnico onde a estética pode se encontrar coma ética e onde as práticas responsáveis e sustentáveis podem passar a serem consequências de uma consciência social mais ampla. Isso é moderno.

[1] FHCM - HTTPS://fhcm. paris/en/paris-fashion-week-en/dates/ [2] Fonte: ICVA -Índice Cielo do Varejo. Disponível em: www.cielo.com.br/boletim-cielo-varejo/ [3] The_State_of_Fashion_2020_Coronavirus_Update%20(2).pdf [4] International Labor Organization (2016)

*Professora-Pesquisadora do Re-Lab, Laboratório de Pesquisa em Práticas Sustentáveis da ESPM, RJ.

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